É uma noite de sexta-feira típica de verão. Muitas pessoas estão se afundando na noite e na cachaça. Eu só quero o silêncio da estrada, olhar para as estrelas no meio do nada e encontrar pessoas queridas, que não vejo há anos.
Enquanto espero o ônibus que me levará 7 anos de volta no tempo, um rapaz me observa. Apreensivo, respiração ofegante, cara de preocupado.
- Você vai pra Minas também? – ele me pergunta.
- Vou sim, Juiz de Fora. – respondo sem pensar.
- Está atrasado, não é? Na passagem está marcado 21:25 e até agora nada! – ele observa muito bem.
Lembrei que eu também ficava ansioso dessa mesma maneira quando costumava fazer essa viagem e prontamente acalmo o rapaz, já percebendo que é a primeira vez que ele fará o trajeto.
– Relaxa, bróder, sempre atrasa, fica tranquilo – sentencio.
Hélio se apresenta e começa a me contar a sua história. Conheceu Denise pela internet e está indo ao encontro dela pela primeira vez, já que há dois meses eles só conversam pela internet.
- Liguei lá e a pedi em namoro. A mãe dela não gostou muito, mas é o que eu quero! – diz ele
“Está ai um cara que pensa quase como eu”, falo com meus botões. Noto a quantidade absurda de malas e pergunto quanto tempo ele pretende ficar na cidade. Fico surpreso com a resposta.
- Vou pra ficar, não volto mais, vou me casar com ela, abrir uma lanchonete lá e começar tudo do zero, a minha mãe não gostou, disse que não é mais pra eu voltar, a mãe dela não gostou muito também, mas é o que eu quero! Não volto mais mesmo! – ele volta a repetir.
“Não, ele não pensa como eu, eu não seria tão corajoso, nem tão louco assim”, penso eu e imediatamente já me coloco no meu lugar. Hélio me conta um pouco da vida dele. Trata-se de um rapaz de 21 anos com sonhos tão puros, que chega a ser ingênuo – lembra um certo cara de 7 anos atrás.
Ele me diz com orgulho que não bebe, não fuma e não tem vícios. Que já morou em São Paulo, Bahia e Atibaia e já trabalhou com tudo um pouco para ganhar a vida. Começa a implicar com agumas prostitutas que estão ali perto, igualmente tentanto ganhar a vida, do jeito delas.
- Oferece ali “50 conto” e uma cerveja pra você ver. Eu já quase fiz isso, mas não sou esse tipo de sujeito, sou fiel! – ele diz.
Eu apenas dou risada. Hélio me conta que onde a futura esposa mora tem “muitos maloqueiros que dão em cima ela”, mas ele não liga, pois sabe que ela também é fiel.
– Eu também sou, nem aquelas ali do bar nem nenhuma outra me interessa mais – diz, com um sorriso no rosto.
O ônibus chega e os olhos dele brilham – chegou, finalmente! – ele diz como se fosse uma criança esperando a vez de andar de montanha-russa. Nos separamos por enquanto. Durante a viagem, enquanto passo por cidadezinhas pequenas e simpáticas do sul de Minas, penso como Hélio pode ter coragem de jogar toda uma vida para o alto e recomeçar ao lado de uma pessoa que ele nunca viu pessoalmente a mais de 500 km de casa.
Enquanto olho para o céu estrelado, Mike Ness me diz “vá em frente e levante-se, é um novo dia”, e penso que Hélio está apenas correndo atrás da sua felicidade. Como todos nós fazemos, de certo modo. A diferença é que ele, assim como eu, não liga para o que os outros falam, e vai persegui-la de qualquer maneira.
Depois de algumas horas naquele ambiente começo a reparar nas pessoas. Cada uma está fazendo essa longa viagem por um motivo. Vejo pessoas indo visitar parentes, vejo executivos a trabalho, a moça atrás de mim liga para o namorado a cada 10 minutos sussurrando que está chegando e que está com saudades. “Estarei nos seus braços de manhã, meu amor”, ela diz.
Eu? Eu só quero lembrar que o tempo não apaga verdadeiras amizades e histórias, que às vezes, para algumas pessoas, você é perfeitamente descartável e substituível. Que em questão de dias você pode deixar de ser importante para alguns, mas que, quando você realmente significa algo para alguém, e quando você vive algo verdadeiramente intenso e verdadeiro, o tempo e a distância não podem apagar isso.
Mas nenhum de nós está ali numa missão tão nobre quanto Hélio. À medida que a viagem passa, vejo que pouca coisa mudou durante esses 7 anos. As paisagens, o caminho, as paradas, eu me lembro de tudo, e a cada quilômetro rodado eu volto um pouco no tempo, lembrando do rapaz que eu era, cheio de sonhos, que queria virar historiador, e não jornalista. Sim, a profissão pela qual hoje sou completamente apaixonado era minha segunda opção, uma prova que nem sempre a gente acerta de primeira, e que nem sempre o caminho que a gente sempre acreditou cegamente é o correto.
Mais do que isso, penso na pessoa que me tornei.
O rapaz que tinha ingenuidade demais e cicatrizes de menos cresceu. Aprendeu que o mundo não é um conto de fadas, que as pessoas vão te machucar, às vezes sem querer, e que você vai ter que saber lidar com isso. Aprendeu que nem todos os sonhos são possíveis de realizar. Talvez falte nele hoje um pouco da pureza e ingenuidade do Hélio, mas se tem uma coisa que ele aprendeu foi: nunca se arrependa, sempre faça o que o seu coração manda e o que você acha correto.
Por que, no final, pessoas vêm e vão, e só as importantes ficam na sua vida, mesmo que à distância. O importante é que você marque a vida delas, mesmo daquelas que vão e não voltam. Que você acrescente, traga coisas boas e deixe a sua marca, por menor que seja, durante essa passagem. Muitas vezes talvez você não seja reconhecido por isso, mas não espere algo em troca. Fique em paz com a sua consciência, isso é que é o importante.
Chego ao meu destino. Primeira coisa: café. Estou sedento por um café. Sento no balcão e ao lado um grupo de jovens – dois rapazes e uma menina – comentam sobre as maravilhas do litoral da França. Não presto muita atenção, o litoral da França jamais terá a beleza do lago da minha cidade e das suas capivaras que se misturam ali aos moradores apenas para olhar a vida passar.
É então que reencontro Hélio. Encostado numa parede com cara de assustado, usando uma tomada para carregar seu celular.
- Vou dar um tempo aqui, não quero chegar muito cedo e acordar as pessoas lá, não quero atrapalhar – diz ele, que completa – daria tudo por um café, mas estou com o dinheiro contado – quase me implorando para que pagasse um para ele.
Ora, homem nenhum nesse mundo merece ficar sem um café. Pago um para ele com o maior gosto. Enquanto ele degusta o café preto e quente, vou até o guichê comprar a minha passagem de volta. E penso que a minha aventura por aqui é passageira, que a minha vida e a minha aventura de verdade estão em outro lugar, e que logo terei que voltar para ela, o que me dá certa segurança, afinal. Já Hélio acaba de se prender, talvez sem saber, a este novo lugar e a essas novas pessoas.
Espero que ele se dê bem nessa nova realidade.
Quando volto para o bar, não posso deixar de notar seu rosto. Ele está tenso, preocupado, indo morar com pessoas que nunca viu, se casar com uma mulher que ele diz amar, mas que também nunca viu, para trabalhar numa cidade que não conhece e, para completar, está sem dinheiro.
Isso sim que é começar do zero, isso sim que é coragem. Ou, para alguns, loucura.
Não posso fazer muito mais por ele. Apenas desejo boa sorte, pago seu café e deixo mais alguns trocados para que ele possa ao menos pegar um ônibus até o destino dele. Desejo de novo que tudo corra bem. Ele agradece, pede meu telefone e diz que quando tiver a casinha dele em Juiz de Fora vai me ligar e que será a vez dele me pagar o café.
Essa sim é uma ligação que eu quero receber um dia.
Ainda o vejo mais uma vez, indo até o ponto de ônibus. Olhar perdido, um misto de medo e entusiasmo de quem está se jogando rumo ao desconhecido.
Um café e uns trocados. É o máximo com que pude ajudar Hélio na sua aventura e na sua nova vida. Espero que sirva ao menos como um empurrão. Ele some no meio da multidão, eu subo no meu táxi e vou embora. Boa sorte, garoto!
Por vezes, o maior sinal de que você está fazendo a coisa certa é quando você conta os seus planos para as pessoas e elas dizem “você é louco!” Se te disserem isso, meu amigo, vá em frente, pois você está no caminho certo.
No final, talvez o mundo só precise de mais pessoas corajosas, como o Hélio.